Dificilmente vemos um filme sobre a guerra, seja ela qual for, que não a glamorize, e 1917 é uma belíssima exceção, inserindo o espectador no meio dos horrores da Primeira Guerra Mundial de forma tão real que ao final das quase duas horas de exibição estamos tão ofegantes quanto os protagonistas; isso se deve muito pelo fato do filme ter sido gravado inteiramente em plano-sequência - quando se registra a ação de maneira sequencial e sem cortes aparentes - quase como se fosse em tempo real, mantendo um senso iminente de urgência.
No quesito técnico o longa é impecável, em particular a fotografia que é um espetáculo a parte e os efeitos sonoros nos fazem sentir inteiramente imersos na jornada dos protagonistas; não obstante recebeu inúmero prêmios na temporada de premiações incluindo 3 Globos de Ouro e 3 estatuetas das 10 categorias em que foi indicado ao Oscar.
Roteiro
Inspirado pelas histórias que ouvia de seu avô, Alfred Mendes, combatente na Grande Guerra, o diretor Sam Mendes em seu primeiro trabalho também como roteirista cria uma narrativa visceral das trincheiras, expondo um realismo que salta ao olhos ainda que o roteiro seja bem simples, sendo possível resumir sua premissa em apenas um parágrafo.
O exército alemão está batendo em retirada e as tropas britânicas lideradas pelo Coronel Mackenzie (Benedict Cumberbatch) querem fazer um ataque de surpresa, o que eles não sabem é que a estratégia alemã conta com isso para pega-los em uma emboscada. Ciente disso o General Erinmore (Colin Firth) envia os soldados Tom Blake (Dean-Charles Chapman) e Will Schofield (George MacKay) para levar uma mensagem alertando do contra-ataque inimigo já que as comunicações foram cortadas, a fim de evitar que 1600 homens, incluindo o irmão de Blake, caiam na armadilha germânica.
A falta de complexidade pode incomodar alguns espectadores mais exigentes, principalmente quanto a profundidade dos personagens, que são inseridos na trama quase que aleatoriamente - até o momento que sabemos que o irmão de um deles pertence ao batalhão que pode cair na armadilha. Mas levando em conta que o longa descreve a história dos dois Cabos de forma linear e contínua, em uma campanha quase que ininterrupta através do campo de batalha até o ponto em que a carta deve ser entregue, percebemos que não há tempo para apresentações e diferente de outras obras que retratam a vida pregressa de seus personagens e só depois os insere na batalha, como é o caso de Até o Último Homem (2017) por exemplo, os traços de suas personalidades são expostas a medida que precisam lidar com as dificuldades que surgem no caminho.
Com isso o roteiro tira a responsabilidade do heroísmo dos grandes generais e a coloca sobre dois jovens cabos, tão normais quanto nós, aumentando a sensação de que aquela missão é algo possível, e a medida que eles avançam pela Terra de Ninguém somos naturalmente colocados ao seu lado, principalmente pela câmera fixa sobre seus ombros e a "mecânica de checkpoint", característica própria dos jogos em terceira pessoa, como Uncharted e Tomb Raider, por exemplo, mas que também corroboram fortemente para a imersão narrativa que o filme tanto almeja.
Direção e Elenco
Para fazer um filme de roteiro tão simples ser tão elogiado e concorrer/ganhar tantos prêmios, a produção deve ser impecável, conquistando o interesse do espectador através do apuro técnico, visual e sensorial, de modo que o que é feito atrás das câmeras se sobreponha ao que está na frente, o que é exatamente o caso de 1917. Longe de mim subestimar as atuações e a trama em si, mas é na produção que a grande virtude do filme aflora; e deixar a história convincente passa invariavelmente por dois aspectos importantíssimos, que são responsáveis pela nossa imersão nos filmes em geral: trilha sonora e fotografia. Nesse sentido o diretor Sam Mendes, vencedor do Oscar de melhor filme com Beleza Americana, em 1999, escolheu sua equipe com nomes de extrema competência e com quem já trabalhou.
A direção de fotografia é, talvez, o atributo mais notável da produção, já que o plano-sequência é seu grande chamariz. Roger Deakins, vencedor do Oscar na categoria em 2018, por seu trabalho feito em Blade Runner 2049; que também trabalhou com Sam Mendes em 007 Operação Skyfall e fez, ao lado dos Irmãos Coen, o excelente Onde Os Fracos Não Têm Vez, topou o desafio de fazer um filme inteiro em uma única tomada aparente e se deu muito bem nessa empreitada. Além do plano-sequência, o longa usa apenas luz natural, o que exigiu da equipe de produção um esforço ainda maior pelo fato de a jornada dos protagonistas se passar num dia nublado, com trecho internos e noturnos, que são onde os recursos fotográficos são mais exigidos. Seus planos longos, o maior tem aproximadamente 9 minutos, expressam uma estética de guerra diferente das usadas em filmes sobre a II Guerra, mais vazia e repleta com cores mortas e desbotadas e os ambientes amplos, especificamente na Terra de Ninguém, expõem o clima de desolação do conflito. Os trechos em ambientes fechados, como o abrigo pelo qual Blake e Schofield precisam passar, causam a sensação claustrofóbica clássica desse tipo de cena. Já as passagens noturnas, através das ruínas de uma cidade são as mais belas, se destacando sobretudo pela iluminação natural dos sinalizadores e do incêndio provocado pelas tropas alemãs; resultado de um árduo trabalho de estudo e ensaios para saber o tempo e a trajetórias das luzes e o caminho perfeito para que a cena ficasse perfeita.
Já a trilha sonora ficou aos encargos de Thomas Newman, conhecido por seu trabalho em Beleza Americana e 007 Operação Skyfall, além de Um Sonho de Liberdade. A sonorização é fundamental na criação da tensão, ora com sons mais urgentes, que elevam nossa atenção aos perigos que podem surgir, ora com longos períodos de silêncio, nos deixando angustiados e igualmente apreensivos quanto ao que não podemos ver ou ouvir. De igual modo os efeitos sonoros das armas, das botas pisando o solo enlameado e até o atrito entre as roupas e os equipamentos foram perfeitamente realizados para nos inserir na história.
O elenco também está de parabéns, e apesar de termos participações de grandes astros de Hollywood, são os jovens Dean-Charles Chapman (Game of Thrones) e George MacKay (Capitão Fantástico) que roubam a cena, entregando atuações dignas de grandes atores, principalmente pela dedicação emocional, realçando o desespero e o espanto de estar no epicentro da batalha mais sangrenta da humanidade até então. Além disso eles reforçam a ideia de herói comum, colocando dois rostos pouco conhecidos no protagonismo de um ato homérico que salvará milhares de vidas. Já as participações de Benedict Cumberbatch, Richard Madden, Colin Firth, Mark Strong e Andrew Scott são pontuais, acentuando a semelhanças com os videogames, funcionam quase como uma cut scene de Call of Duty ou Battlefield, quando um comandante do exército dá as ordens para o prosseguimento da missão.
Veredito
Desbravando um campo pouco explorado que é a I Guerra Mundial, Sam Mendes mostra a realidade crua e desumana da guerra pelos olhos de dois soldados britânicos incumbidos de levar uma mensagem a um batalhão que está prestes a cair em uma armadilha alemã. O roteiro bem simples esconde cenas de tirar o fôlego, pois, com o uso da técnica de plano-sequência, nos coloca ao lado dos jovens militares por todo o percurso até o objetivo final, passando por situações extremas de perigo e calmaria, nos transportando por quase duas horas ao ano de 1917. A belíssima e premiada fotografia do longa nos permite contemplar, não só das belas e realistas paisagens, mesmo que destruídas e repletas de corpos, mas principalmente a crueldade humana. Outro fator importante para nossa imersão é a sensação de urgência que está presente do primeiro ao último minuto, oferecendo um espetáculo que mesmo nos momentos mais lentos, em que os personagens não enfrentam algo diretamente, sentimos que eles estão perdendo um tempo precioso. E a trilha sonoro abrilhanta ainda mais a fotografia primorosa, especialmente com a canção Wayfaring Stranger cantada em uma linda cena no terceiro ato, além dos efeitos sonoros que quer com sons sutis que acompanham os soldados numa Terra de Ninguém desolada, quer com o tilintar das balas ricocheteando e explosões espetaculares completam a experiência cinematográfica estonteante que é 1917.
1917 faturou três Oscars, todos pelo apuro técnico, são eles: o de Melhor Fotografia, Melhor Mixagem de Som e Melhores Efeitos Visuais e três Globos de Ouro nas categorias Melhor Filme Dramático, Melhor Diretor e Melhor Trilha Sonora Original
6 JOIAS DO INFINITO
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